Creio que inicialmente, vale uma apresentação, como se trata de minha primeira coluna por aqui. Sou psicóloga e escritora, e por ora, ainda resido no Brasil, com a mudança marcada para breve, este ano ainda. Logo estarei em solo luxemburguês, o mesmo de meus ancestrais. Farei o caminho de volta, digamos assim: eles desembarcaram em terras brasileiras no século XIX, buscando oportunidades, e prosperaram, de fato. Quanto a mim, pretendo fincar minhas raízes em Luxemburgo e iniciar um novo ciclo; agora, com os desafios do século XXI.
E que desafios: já logo na segunda década, estamos enfrentando uma pandemia, que se desdobrou em efeitos econômicos, sociais e emocionais. Eu, como psicóloga social, e, como psicoterapeuta, não posso desconsiderar o impacto aos humores, às relações, e como fez emergir comportamentos que estavam adormecidos ou passavam despercebidos. Pessoas com predisposição ou que já tinham sintomas de doenças como depressão e ansiedade, viram seu quadro agravado. Casais se separaram, devido ao convívio mais estreito. As estatísticas de violência doméstica, contra crianças e mulheres subiram drasticamente.
Geralmente, períodos de crise trazem o que há de melhor e de mais sombrio no âmago humano. Nas guerras, em hecatombes, nas piores tragédias, a solidariedade, o egoísmo, o altruísmo, as traições, melhor se expressam. Não foi diferente com a epidemia do Sars-CoV-2, causador da Covid-19.
Vimos artistas e pessoas sem fama doando seu tempo e cantando em balcões, em diversos recantos do mundo. Quanto aos profissionais da saúde, nem há o que dizer: quantos perderam a própria vida, na tentativa de salvar tantas outras? Exaustos, mas sem deixar-se abater, enfermeiros, médicos e todo o pessoal de apoio, se desdobram na luta cotidiana pela sobrevivência dos que definham. Os cientistas trabalharam incansavelmente em busca do desenvolvimento das vacinas, ou na testagem e produção de medicamentos que pudessem ser eficazes contra o vírus. Então, a doença que atingiu todo o globo, trouxe consigo a força, a energia, a bondade e a capacidade de doação.
Por outro lado, vimos o que a Psicologia denomina Transtornos Disruptivos, aos borbotões. Estes transtornos se referem ao conjunto de comportamentos que envolvem rebeldia às normas, agressividade, conduta antissocial. Em casos mais graves, pessoas que apresentam estes distúrbios, desrespeitam completamente os direitos básicos alheios, e são extremamente cruéis e isentos de capacidade de empatia.
O DSM V, o manual usado pelos profissionais da saúde mental com fins de diagnóstico de distúrbios mentais, descreve, como principal característica desses transtornos, o afeto superficial ou deficiente. A pessoa não expressa sentimentos nem demonstra emoções, a não ser de uma maneira que parece superficial, insincera. Ou ainda, as expressões emocionais são usadas para obter algum ganho: por exemplo, as emoções são evocadas com a finalidade de manipular ou intimidar outras pessoas.
São pessoas incapazes de seguir regras, adequar-se a um acordo de coletividade. Respeitar protocolos como o uso de máscaras, o isolamento social, abdicar de eventos com aglomeração – todos atos indispensáveis para o freio da contaminação. No ápice do comportamento individualista está o movimento anti-vax, orquestrado por grupos que estão na contramão dos interesses de suas comunidades: estes parecem não compreender que só a vacinação em massa contribuiria para uma imunização geral da população. Bem como, que os mais vulneráveis, os imonudeficientes, que não podem tomar a vacina – como os portadores de câncer em estado grave -, precisam que todos se engajem na vacinação, para que eles se mantenham seguros.
Obviamente, não podemos dizer que as pessoas que apresentam tais comportamentos são portadoras de algum tipo de distúrbio psicológico ou psiquiátrico. Entretanto, veio à tona, neste fatídico ano de 2020, um lado tremendamente egoísta e autocentrado de uma boa parcela da população mundial.
Os iluministas criaram o conceito de Contrato Social. Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau forjaram a ideia de que, para que a sociedade viva em harmonia, seria essencial que o indivíduo abrisse mão de alguns de seus direitos individuais, em prol de uma coletividade. O ser humano, com base num suposto contrato que existe entre indivíduos e Estado, aceita abdicar de parte de sua liberdade, para submeter-se às leis da sociedade e do Estado. Por sua parte, o Estado se compromete a defender o homem, o bem comum e dar condições para que ele se desenvolva.
Esse pressuposto filosófico foi o que fundamentou a Revolução Francesa e os ideias de igualdade, liberdade e fraternidade. É a base das instituições democráticas, dos Direitos Humanos, e dos Estados Democráticos.
Que a pandemia deixe como legado a importância desses valores. Que os que ainda não os compreenderam, possam receber a iluminação destes que propuseram um mundo em que os interesses coletivos preponderem sobre os individuais. Respeitar o contrato social formulado pelos iluministas é essencial para superar essa crise. É tarefa minha, sua, de todos nós.